sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Um caso de amor


Crônica da Cidade,
Por Conceição Freitas, do Correio Braziliense, 22/10/2010.


Retumbante história de amor estremeceu a mais importante escola de samba de Brasília. O presidente da Aruc, Paulo Costa, se apaixonou pela porta-bandeira da agremiação rural, a Alvorada em Ritmo, Maria Pé Grande. Para ficar com seu amor, Paulo abandonou a Aruc. Na época, os cruzeirenses acreditavam que o acontecimento fazia parte de um complô para tentar impedir o crescimento da escola. O episódio inspirou o primeiro samba da Aruc, Muita gente se gloreia se o Cruzeiro morrer, de Jandira de Oliveira Lima e Milton da Marinha. Dizia assim: “No Cruzeiro deu-se um caso tão medonho/Que pra mim parece um sonho/Não pensava haver/Porque, porque, porque/Muita gente se gloreia/Se o Cruzeiro morrer.”

O amor de Paulo e Pé Grande não matou nem machucou nem o Cruzeiro nem a Aruc. A cidade é hoje um caso excepcional na urbanização de Brasília. Grudada no Plano Piloto, ainda consegue manter a atmosfera de subúrbio carioca, apesar da certa ostentação das casas à margem do Eixo Monumental. A Associação Recreativa Unidos do Cruzeiro completou 49 anos ontem, sob os efeitos de mais uma de suas muitas crises financeiras, somada a um crônico problema fundiário que se resolveria com boa vontade política. (Onde? Cadê?).

Patrimônio imaterial de Brasília, a Aruc é muito mais do que reduto do samba ou território de resistência carioca. Apesar de ser geneticamente vinculada à Portela, a Unidos do Cruzeiro é a Mangueira de Brasília, por sua ligação histórica com a comunidade, por um certo conservadorismo na execução dos desfiles — a Aruc não vê com simpatia o topless na avenida, por exemplo. Do seu jeito, a Aruc ajudou a consolidar Brasília. Os cariocas que deixaram o esplendor das montanhas e das praias para se perder num chapadão extenso e desértico inventaram um novo Rio feito de casinhas brancas erguidas na solidão a oeste do Plano Piloto, ponto de encontro de gaviões do cerrado. Surgia o Bairro do Gavião e com ele o símbolo da Aruc, a tradução brasiliense para a águia da Portela.

Nesses 49 anos anos, a Aruc recebeu boa parte da aristocracia do samba — Candeia, Natal da Portela, Clementina de Jesus, Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal, Dona Ivone Lara, Jamelão, Xangô da Mangueira, Zé Kéti, Noca da Portela, Jovelina Pérola Negra, Manassés, Paulinho da Viola, Nelson Sargento. Até Cartola e Nelson Cavaquinho estiveram por lá, mas só de visita. Em sua volta a Brasília, depois dos tempos de ditadura, Oscar Niemeyer também tomou um cafezinho com o samba candango, ao lado do então governador José Aparecido, de Ziraldo e Pompeu de Souza.

A Aruc fez muito mais do que trazer a nobreza do samba para a capital do país ou ser 29 vezes campeã dos desfiles das escolas de samba de Brasília. Ela ajudou, e muito, a transformar a maquete numa cidade verdadeira — cheia de contradições, entre as quais a diferença da cor da pele. O Cruzeiro trouxe a negritude para Brasília, ajudou a cidade a se lembrar de que ela não é somente branca. Ela também é negra, como o Brasil. A Aruc ajudou a Brasília a ser mais brasileira.

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