terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

É preciso se perder

Crônica publicada no Blog da Conceição

No banco de trás do jipe de janelinha de plástico, duas meninas eram conduzidas a seu primeiro carnaval, em fins dos anos 1960. Feita a travessia do bairro popular ao centro da cidade — algo como da Ceilândia ao Plano Piloto —, chegaram ao olho do furacão. Elas nunca havia visto tanta gente feliz, misturadas, desconhecidas umas das outras, e felizes. 

Era diferente das festas juninas, onde a alegria era doméstica, girava em torno da fogueira e reluzia em estrelinhas de fogos de artifício. 
O carnaval é geneticamente urbano. Seu território é o asfalto, o anonimato. É saliente, o carnaval. Precisa das cidades, das praças e das avenidas para desarrumar as cidades, os bons modos e a espécie urbana. Não é fácil ser civilizado, mesmo para quem apenas finge que é. 

Carnaval de rua, como aquele das duas meninas do jipe da janela de plástico, nasce da combustão urbana. 

Em Brasília, ele nasceu da saudade do Rio de Janeiro. Da saudade da democracia surgiu o bloco mais importante da cidade. 

Aos 55, a nova capital é invadida por mais de 40 blocos de carnaval — contei 44, mas há quem diga que são mais de 50. A maioria deles avança pelo Plano Piloto, desde a Praça do Cruzeiro, passando pela contramão da W3, se derramando no Eixão, descendo e subindo as tesourinhas e parando nas entrequadras. 

Se doutor Lucio estivesse vivo, se sentiria tão positivamente surpreso quando de sua visita à Rodoviária na década de 1980. O arquiteto percebeu que o povo havia melhorado a obra dele, transformado uma projeção elitista numa praça popular. 

Não é só em Brasília que o carnaval de rua está explodindo. Essa recente invasão carnavalesca talvez faça parte de um movimento de ocupação das cidades, um gesto político da população cansada do fracasso urbano, um modo espontâneo de re-humanizar as metrópoles antes que elas nos desumanizem irremediavelmente. 

Muita coisa mudou desde o carnaval visto da janelinha de plástico, mas nada mudou. É preciso se perder, pelo menos uma vez por ano. E se perder na multidão é um modo de se reconhecer um no outro, uns nos outros. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário