sábado, 8 de março de 2014

Matriarca da Aruc

por Jane Godoy, Coluna 360 GRAUS, Correio Braziliense de 07 de março de 2014

O SEGREDO ESPECIAL da Associação Recreativa Cultural Unidos do Cruzeiro (Aruc) não esteve na avenida. A riqueza da escola de samba vive hoje, quietinha,em uma casa aconchegante no Cruzeiro Velho. Juracy Tremendani dos Santos completa 99 anos em 18 de março, dos quais 51 foram vividos na capital.
“Ela gostava muito do movimento,de ver a família se arrumando antes do desfile” Luzia Tremendani, neta de Juracy

Neta de italianos que desembarcaram na Ilha do Governador(RJ) no fim do século 19, Juracy é a matriarca de uma das famílias que formou o Bairro do Gavião, atual Cruzeiro. As mãos dela estão na fundação da Aruc,escola grande campeã do carnaval candango e patrimônio imaterial do Distrito Federal.
“São 99 anos.Quase 100!”, comemora Juracy, sentada na varanda de casa. Atenta, lúcida e com um sorriso sereno, ela acompanhou tudo, ainda que não pudesse escutar. Após tanta experiência, os únicos problemas de saúde que enfrenta são a hipertensão e a perda auditiva.
Família reunida
Hoje, quem conta a história dela são os filhos, netos e até bisnetos (já são 10). “Somos como pintinhos em volta da galinha”, brinca uma das filhas, JuremaTremendani, 60 anos.
A dona de casa Juracy e o marido, João Melo dos Santos, que faleceu aos 56 anos em 1966, chegaram dois anos após a inauguração de Brasília.
Ex-marinheiro em Sergipe, João era funcionário da Câmara dos Deputados no Rio de Janeiro e foi transferido para Brasília com a mudança da capital. O casal e os oito filhos vieram em 1962. Ainda naquele ano, a vizinhança do Cruzeiro expandiu de um clube de peladas para uma escola de samba.
Juracy era encarregada de costurar e lavar as camisetas do time e de preparar as marmitas da equipe de desfile. Sempre nos bastidores, ela ainda vive o brilho e a emoção todas as vezes que a escola entra na avenida.
“Desfilar mesmo, ela nunca desfilou. Nem mesmo nos ensaios”, diz Luzia Tremendani, 33 anos. A neta explica que o apoio de Juracy era estrutural e emocional para a Aruc: “Ela já tinha muito serviço para fazer emcasa, mas gostava muito do movimento.”
24 netos
Luzia faz parte do time de 24 netos que o marido de Juracy não viu nascer.Resignada, ensinou os filhos a cuidar uns dos outros. E assim foi. “Eu brincava no ferro velho dos carros alegóricos”, lembra Luzia. Era uma necessidade, uma forma de trazer a marca carioca para a identidade do lar que se formava.
O terceiro filho de Juracy, Hélio,62 anos, tomou a frente da escola de samba e da agremiação de futebol ainda jovem, aos 18 anos. Para Juracy, isso era sinônimo de alegria. Enquanto o filho corria para preparar o desfile, a mãe corria para cuidar dele. “Se eu chegar em casa com a calça amarrotada, ela pede logo para eu comprar uma nova. Diz que estou andando muito mal vestido”, ri Hélio.
Sabedoria popular
As lições de vida eram passadas por meio de provérbios populares. “Quem não quer ser lobo, não vista a pele. Comendo com Pedro, bebendo com Pedro e olho no Pedro. Diga com quem tu andas, que te direi quem és...”, exemplifica Jurema.
Iracema dos Santos, 53 anos, a quarta a nascer, já desfilava na Ilha do Governador. Ainda com vestígios do sotaque carioca, Iracema não teve espaço para perder os costumes: “Viajávamos sempre para o Rio. Ela adorava passear. E levava toda a família”, recorda.
Os nomes do filhos não foram escolhidos em vão. Mesmo que sem espaço para expressar a religiosidade na capital ainda jovem, a dama Juracy manteve ativa a crença no candomblé e na umbanda. Além dos padroeiros São Jorge e São Cosme e Damião, a Aruc também tem a proteção das entidades Zé Pilinhas e Seu Tranca Rua.
Sem ponto final
Orgulhosa, a viúva nega a ajuda da filha Iracema para caminhar. Por fim, acaba cedendo. Acorda às 7h, no máximo, e vai dormir às 22h. “Mesmo sem ter estudos, minha mãe é muito sábia. Acompanha os jornais assiduamente e lia muitos livros, principalmente sobre o kardecismo”,relata Jurema.
Ela está aprendendo, com paciência, a superar a morte de duas filhas por câncer, uma há 11 anos e outra há 3 anos. Mas se alegra com a visita dos netos aos domingos. “Ela não pensar em ponto final. Para ela, a vida é eterna”, declara a filha Jurema.

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