terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Saia no abre-alas


Escolas de samba brasilienses devem contratar cerca de 600 pessoas neste ano. São costureiras, artesãos, coreógrafos: profissionais que enchem os barracões para fazer o carnaval acontecer.

» MANOELA ALCÂNTARA (Matéria publicada no Correio Braziliense de 17/01/2010)

O barulho das ferragens sendo cortadas, o cheiro da cola e da tinta fresca fazem parte da vida de Isaías Mendonça Cavalcanti, 40 anos, desde quando ele ainda era um menino. Isaías acompanhava o pai em todos os passos para a criação do carnaval da Associação Recreativa Unidos do Cruzeiro (Aruc). Toda a confecção dos carros alegóricos, do figurino e até o

samba-enredo sempre estiveram na rotina do brasiliense. Tanto que foi ali no barracão da escola de samba que Isaías adquiriu uma profissão, criou amor pelo trabalho e aprendeu que a curiosidade pode ser uma das maiores armas para quem deseja vencer na vida.

Foi xeretando um trabalho e outro que ele descobriu que gostava de pintar. Olhando o trabalho dos marceneiros que aprendeu a cortar madeira e fazer moldes. Vendo o carnaval acontecer que chegou ao posto máximo do setor: virou um carnavalesco. “Sempre fiz de tudo um pouco na escola de samba. Aprendi cada passo para se fazer um desfile bonito e, hoje, organizo as atividades da Aruc”, descreve. “Sou técnico em eletrônica, serigrafista e decorador durante todos os meses que o carnaval não acontece. As profissões que adquiri ao longo da minha experiência foram no barracão”, complementa.

Embora até alguns brasilienses pensem o contrário, o carnaval da capital federal tem tradições arraigadas que são preservadas de geração a geração. Só neste ano, a festa da carne, como chamam os religiosos, terá R$ 3 milhões liberados pela BrasíliaTur para o desfile das escolas de samba no Ceilambódromo. “O pagamento de mão de obra abarcará 45% desse valor” , ressalta o presidente da União das Escolas de Samba de Brasília (Uniesb), Geomá Leite. Estimasse que 600 pessoas sejam contratadas.

São costureiras, figurinistas, decoradores, marceneiros e muitos outros profissionais que fazem dessa época do ano uma forma de ganhar dinheiro e dar um toque de fantasia ao dia a dia. “É gratificante ver o nosso trabalho pronto e sendo aplaudido pelas pessoas na avenida”,empolga-se Luiz Fernando Cavalcanti, 31. Pelo sobrenome, já se percebe que o amor pelo carnaval permanece na família de Isaías. Como carnavalesco, ele organiza as atividades dos irmãos que trabalham com ele e de centenas de outros profissionais da agremiação. “Crescemos aqui. Pegamos amor pela escola e fazemos um pouco de tudo”, conta Daniel Leonardo Cavalcanti, 23 anos.

Até o momento de entrar na avenida com carros alegóricos montados, fantasias impecáveis e samba na ponta do pé,as agremiações passam por diversas etapas, que dependem de profissionais competentes e comprometidos. Todos importantes para a construção perfeita das alegorias que encantarão o público. “As funções são interdependentes, uma não funciona sem a outra. Desde aquele que limpa o chão até o que organiza a festa, cada integrante da comunidade tem sua importância”, afirma o presidente da Uniesb, Geomá Leite.

Temporários

Por esse trabalho, os integrantes que formam a estrutura das 18 agremiações e quatro blocos de enredo do Distrito Federal receberão de R$ 510 a R$ 20 mil. Neste ano, de uma forma diferente. Por meio de uma licitação, foi escolhida uma empresa para terceirizar a mão de obra do carnaval e fazer os contratos temporários dos empregos gerados para a festa. Antes, o dinheiro era repassado pela antiga Liga das Escolas de Samba de Brasília (Liesb), hoje, Uniesb.

Para permitir que pessoas da região administrativa vinculada à escola participem do planejamento e da construção das alegorias, a Uniesb garantiu, em cláusula contratual, a admissão de pessoas indicadas pelas agremiações. “Existem pessoas que dedicam 40 anos de suas vidas à organização do carnaval. Elas e os novos componentes de confiança das escolas não podem ficar de fora por causa de uma mudança nas regras de pagamento de pessoal”, ressalta Geomá Leite.

Segundo ele, o trabalho precisa ser finalizado a tempo para o mês de fevereiro. Logo, se a empresa perceber que existe a necessidade de contratar profissionais que não sejam indicados pelas escolas de samba, ela poderá fazer. “Existe um prazo a ser cumprido e, dentro da verba oferecida, qualquer profissional poderá ser contratado. A preferência é pelos de confiança, os tradicionais do carnaval, mas isso não exclui a possibilidade de novos ingressos no setor”, admite o presidente da Uniesb.

Os outros 55% da verba liberada pela BrasíliaTur para a festa são administrados pela Uniesb para a compra de materiais. São ferragens, panos, brilhos, paetês para compor as alegorias. “Seguimos tudo à risca para que a planilha de gastos seja cumprida. Tanto as escolas do grupo especial, quanto as do de acesso devem ser contempladas”, diz Geomá.Os primeiros materiais foram comprados em São Paulo no início deste ano, já que metade dos recursos (R$ 1,5 milhão) foi liberada no fim de dezembro.

Para a maioria dos profissionais das escolas de samba, ter o trabalho aplaudido na avenida vale mais do que o salário recebido. Há quem se dedique ao carnaval durante 12 meses.

Muito trabalho e paixão nos barracões

No quesito trabalho, o carnaval em Brasília leva nota 10. Na cidade, a festa oferece oportunidades para muitos profissionais. As funções são as mais variadas e empregam, por até três meses, costureiras, serralheiros, marceneiros, escultores, carpinteiros e mecânicos (confira detalhes no quadro).Mesmo com a longa jornada de trabalho, o emprego temporário ajuda na renda de muitas famílias. O serigrafista Igor da Silva, 28 anos, conheceu recentemente esse enredo. Desempregado desde novembro passado, ele viu, no carnaval, uma boa oportunidade para conseguir um emprego temporário e sair do aperto.

Mas o trabalho não é fácil. Na função de serralheiro da Associação Recreativa Unidos do Cruzeiro (Aruc), ele tem se esforçado para garantir que a estrutura dos quatro carros da escola esteja firme na hora do desfile. “Como estou sem emprego, recebi a indicação de um amigo para trabalhar. Está sendo uma grande oportunidade”,avalia. Mas ele lamenta que o trabalho seja apenas por um mês. “Gostaria de trabalhar mais e aumentar minha renda” diz.

Na mesma equipe de Igor, está o experiente serralheiro Francisco Alves, 47 anos. Trabalhador autônomo, ele dispensa serviços nessa época para trabalhar apenas com o carnaval. “Deixo minhas outras atividades e me dedico apenas a fazer a estrutura completa dos carros”, explica. Há quatro anos com esse trabalho, Francisco enfatiza que não tem planos de deixar tão cedo a função temporária. “É emocionante ver a escola ganhar e saber que nosso esforço valeu a pena”, avalia. De acordo com Francisco, o valor pago pelo trabalho ultrapassa o salário mínimo, que é de R$ 510.

O presidente da escola Bola Preta de Sobradinho, Rony Tala, conta que uma equipe de 60 pessoas foi contratada para que a escola esteja pronta até o dia do desfile. “Todas essas pessoas são contratadas nessa época para fazer com que o carnaval aconteça e fique bonito”, diz. Segundo ele, o tempo para a produção muitas vezes dificulta a contratação. “Com o prazo maior, poderíamos produzir mais, o que demandaria maior mão de obra”, opina.

Também com 60 novos profissionais na área de produção, Moacir Oliveira Filho, presidente da Aruc, conta que esse número pode aumentar até o dia da festa. “Temos muitas pessoas que trabalham de forma indireta. Contratamos equipe de segurança para dar apoio no dia dos ensaios, além de auxiliares e pessoas que ficam nos bares”, explica. Para exercer as funções, segundo Moacir, é preciso ter experiência anterior. “O trabalho fica mais rápido com pessoas que já sabem fazer as atividades”, opina. Mas ele destaca que muitas vezes a escola conta com a colaboração de voluntários.

Comunidade reunida

Afinal, quem são esses trabalhadores? Em sua maioria, moradores da comunidade que unem o amor pela região administrativa e a oportunidade de ganhar um dinheiro extra. Raniere Freitas, presidente da Águia Imperial de Ceilândia, explica que a contribuição das pessoas da comunidade é muito importante. “Além dos trabalhos pagos, existem aqueles que são voluntários”,conta. Com o pouco tempo para produção dos carros e fantasias,ele destaca que existem pessoas que contribuem todo ano.

Responsável pelas esculturas dos carros da Aruc, André Alves de Freitas, 32 anos, é figura presente no carnaval da escola. O artista consegue fazer blocos de isopor se transformarem em figuras belas que encantam o público no Ceilambódromo.

Desde 2000 na escola, André conta que, no início, trabalhava sem receber, mas, após se aperfeiçoar, teve seu trabalho reconhecido. Como em muitas empresas, nas agremiações, também existe o crescimento profissional. Muitas pessoas começam como auxiliares e, após anos de dedicação,conseguem cargos de coordenação em áreas como montagem,alegoria, escultura e enredo.

Assim que a festa acaba, André volta ao trabalho do dia a dia. O escultor, que faz peças para festas e feiras, avalia o carnaval como uma época boa para complementar o salário e conquistar sua realização profissional. “Trabalhar na escola me proporciona fazer uma arte em grande escala, coisa que não consigo fazer ao longo do ano”, explica o profissional enquanto lixa uma escultura de isopor de mais de dois metros.

Em sua equipe ele tem a ajuda de oito auxiliares. Um deles é Luiz Alves Freitas, 56 anos, que vai receber R$ 510 pelo trabalho realizado. “O carnaval dá um dinheiro bom que ajuda a pagar as despesas diárias”, conta. Mesmo trabalhando mais de 10 horas por dia, ele acredita que vale a pena. “Depois de tanto esforço, gosto de acompanhar a escola enquanto desfila”, diz.

Os gestores da festa

Diferentemente das pessoas que assumem funções temporárias no carnaval, há um profissional que pensa na festa o ano inteiro. O carnavalesco é o responsável pela organização e elaboração do enredo, alegorias e até das roupas. Pedro Paulo Lacerda, 57 anos, é um verdadeiro apaixonado pelas alegorias. Há 15 anos na Águia Imperial de Ceilândia, ele conta que vive o carnaval intensamente.

O estilista e costureiro faz questão de acompanhar todo o processo de produção da escola. “Trabalhamos até de madrugada costurando e garantindo que todo mundo tenha sua fantasia”, diz. De acordo com ele, a maioria das pessoas que fazem “o bico de carnaval” mora na comunidade. “As costureiras trabalham o ano todo e veem essa oportunidade como uma forma de complementar a renda. Em um mês, elas podem ganhar até R$ 800”, explica.

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