domingo, 10 de fevereiro de 2013

Confete em preto e branco



Mesmo quando Brasília era só uma obra no meio do barro vermelho, os foliões encontravam motivos para festejar ardentemente. Conheça os principais lances desse (samba-) enredo
Carolina Samorano, Revista do Correio nº404, Correio Braziliense de 10/02/2013.

Muitos vão negar, mas Brasília tem uma bela história de folia. A desconfiança em relação ao potencial carnavalesco da capital vem de longe. Experimente ler um exemplar de jornal dos anos 1970, por exemplo — é certo que encontrará alguém louvando bailes da década anterior. Polêmicas à parte, fato é que uma visita aos arquivos mostra que o samba sempre rolou solto por estas paragens. Entre estacas, sacos de cimento e infinitos quilômetros de terra batida, reluziam sob o sol do planalto as fantasias quase sempre improvisadas dos novos brasilienses. O então inacabado Teatro Nacional, a avenida W3 Sul — centro comercial e social da época —, a Rodoviária do Plano Piloto e mesmo a descida que hoje desemboca no Hotel Nacional foram, durante muitos anos, a passarela de foliões órfãos dos carnavais de suas terras natais.

Não podia ser diferente. Quando a capital do país foi transferida do Rio de Janeiro para o coração do país, trouxe na bagagem o samba. Dos pagodes de fim de semana nos fundos de quintal de funcionários públicos, engenheiros e autoridades cariocas, nasceram os primeiros blocos, de onde depois sairiam também escolas de samba. “Sempre fui mangueirense doente. Quando vim pra cá e fundei a Aruc, virei metade Mangueira, metade Cruzeiro. Quando podia, saía pela Aruc aqui, e descia para o Rio para desfilar pela Mangueira no dia seguinte”, recorda dona Ivoone Araújo, 82 anos, primeira moradora do Cruzeiro — na época ainda Bairro do Gavião — e uma das fundadoras de uma das mais tradicionais escolas de samba da capital, a Associação Recreativa Cultural Unidos do Cruzeiro, Aruc, em 1961.
Enquanto o povo se reunia no início da W3 Sul para ver desfilar as escolas de samba mais competitivas da época — Alvorada em Ritmo, da Asa Sul, e a própria Aruc —, clubes e hotéis ainda inacabados organizavam nada modestos bailes reservados à sociedade aqui recém-chegada. Políticos, empresários e novos ricos amanheciam em camarotes regados a uísque e lança-perfume nos salões do Iate Clube, do Brasília Palace e do Hotel Nacional, responsáveis pelas mais caras e famosas festas da capital, com direito até a celebridades de Hollywood caindo no samba.

Os anos ficaram para trás e o carnaval na cidade hoje em quase nada lembra os antigos bailes. A Aruc segue campeã, mas as grandes rivais dos primeiros anos ficaram pelo caminho. A W3 já não é mais sambódromo, tampouco existem folias pelo Eixão. No Iate, as festas continuam, mas o salão de outrora hoje é galpão de barcos — e os camarotes deram lugar a depósitos. No Hotel Nacional, as últimas lembranças dos carnavais se foram junto com os antigos donos e funcionários, e o incêndio que destruiu o Brasília Palace em 1978 acabou apagando boa parte da memória de suas requintadas festas. Quem conta suas histórias, agora, são antigos foliões, saudosos dos bons carnavais que aqui passaram. “Não existe mais carnaval em Brasília”, concordam. Não deixam de ter razão. Os carnavais que conheceram são apenas páginas da história da cidade.

Alô, povão cruzeirense!
A Aruc, tradicional escola de samba do Cruzeiro, conta 31 títulos do carnaval brasiliense, contra cinco do segundo lugar, a Acadêmicos da Asa Norte. Tem 52 anos de história — é a mais antiga a desfilar atualmente — e, este ano, pisa na avenida batendo recorde em número de componentes desde a sua criação: 1,5 mil. Quem conhece a escola cruzeirense de números, mal imagina o passado bem mais mirrado que sua história guarda. Os primeiros batuques começaram na antiga Quadra 16, Casa 3, do então Bairro do Gavião, reduto de cariocas transferidos da antiga para a nova capital. Era a casa de dona Ivoone Araújo, primeira moradora do bairro. “Não tinha ninguém. Vim com a missão de entregar as chaves para os que aqui fossem chegando”, lembra a carioca, ainda com a cadência típica do sotaque da sua terra natal, que deixou há 54 anos.

Como prometido, os novos moradores chegaram. Com eles, a saudade das rodas de samba, das escolas do coração e dos blocos de rua que deixaram para trás. “Sempre fui do carnaval. No Rio, além de sair na Mangueira, no chão mesmo, desfilava nos blocos 107 e Coração das Meninas. Cheguei aqui e não tinha nada. Não existia carnaval”, conta a pioneira. A vontade da folia falou mais alto e a casa de dona Ivoone virou uma espécie de filial do Rio de Janeiro. Ali, reuniam-se os poucos cariocas do Gavião para batucadas de fim de semana. Não mais que 20 pessoas, na recordação de dona Ivoone.

“A princípio, a ideia era criar um bloco, mas acabamos criando uma escola de samba mesmo”, conta a carioca. A criação oficial se deu na casa de um vizinho, frequentador dos seus sambas de quintal. “Aos vinte e um de outubro do ano de mil novecentos e sessenta e um, às 16 horas, na residência do Sr. Paulo Costa, sito à quadra quatorze, casa ‘11’ no mencionado bairro”, diz a ata da reunião. Estava criada a Associação Recreativa Unidos do Cruzeiro e instituído seu presidente, vice, secretários e demais fiscais.

Começavam então os preparativos para a estreia da escola do Cruzeiro no carnaval brasiliense. Brasil Moreno e Alvorada em Ritmo, hoje já extintas, eram as favoritas ao título. Dona Ivoone mobilizou a recém-criada comunidade para botar a Aruc na avenida. As primeiras purpurinas para a confecção das fantasias foram pagas no crediário. Pouco mais de dois meses separavam a Aruc do desfile. “Nos reuníamos depois do expediente, nos fins de semana, nas madrugadas. O trabalho não parava”, lembra a cruzeirense.


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