segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Escolas de samba marcaram história do DF, mas hoje são símbolo da estagnação cultural

 Desfiles começaram em 1962, mas, após diversas mudanças de endereço, estão suspensos desde 2014. Agremiações reforçam importância para além da avenida

por Maíra Alves, do Correio Braziliense em 15/02/2021.

Desfile da ARUC em 1986 (Acervo ARUC)

Em 2019, Brasília reuniu mais de um milhão de foliões nas ruas nos conhecidos blocos de carnaval. À época, havia grande especulação turística sobre o crescimento da capital brasileira como um importante polo carnavalesco, que foi freada, em 2020, quando as primeiras notícias sobre a pandemia causada pelo novo coronavírus começaram a ser divulgadas. Mas, se hoje, milhares de pessoas ocupam os espaços públicos para celebrar a grandiosa festa, é porque um grupo de pioneiros deu o pontapé inicial antes mesmo da inauguração oficial da cidade.

No fim dos anos 1950, em locais como o Brasília Palace Hotel e em acampamentos na antiga Cidade Livre — atual Núcleo Bandeirante —, já era possível ver comemorações durante a época festiva, com apenas alguns foliões solitários fantasiados pelas ruas. No entanto, oficialmente, o primeiro carnaval no quadradinho, inspirado na temática carnavalesca do Rio de Janeiro, ocorreu em 1961. Naquele ano, a farra tomou conta de clubes do Plano Piloto e da Cidade Livre. A festança era um desejo de Israel Pinheiro, o administrador de Brasília na época.

Em outubro do mesmo ano, foi fundada a primeira Escola de samba de Brasília, a Associação Recreativa Cultural Unidos do Cruzeiro (Aruc). A iniciativa veio por um grupo de moradores do Bairro do Gavião, antigo apelido do que atualmente é o Cruzeiro. Eram, em grande parte, funcionários públicos transferidos do Rio de Janeiro para a nova capital, que, ao chegarem na região, sentiram falta de um espaço de lazer. Como a maioria era portelense, adotaram as cores azul e branco, e, em homenagem ao Bairro do Gavião, ficou este sendo o símbolo da associação. Logo a escola de samba foi projetada para que, já no carnaval seguinte, que ocorreria quatro meses depois, pudesse participar. Em 1962, a Aruc conquistou o 3º lugar no primeiro desfile da história, realizado na importante via W3 Sul. Em 2021, além de ser a única remanescente daquele evento, é reconhecida como a escola de samba brasiliense que mais acumula títulos.

Entre os anos 1970 e 1990, a apresentação das agremiações foi o ponto alto da folia brasiliense e serviu de base para o fomento do samba na cidade e para a disseminação do ritmo também em blocos de rua.


Palcos carnavalescos

No ano seguinte ao carnaval na W3 Sul, o palco da folia foi transferido para a plataforma superior da Rodoviária de Brasília, onde permaneceu até 1966. Até o começo da década de 80, as escolas de samba se apresentavam na região central do Plano Piloto. Em 1982, o desfile foi levado para a Avenida Comercial de Taguatinga, mas logo voltou ao Plano, saindo da área central apenas em 2005 com a construção do Ceilambódromo, em Ceilândia.

Mas as lembranças memoráveis da cidade denotam o tempo em que os foliões lotaram o Eixão Sul, entre os anos de 1980 e 1990, chegando a reunir 50 mil pessoas na noite de desfiles do Grupo Especial, formado por seis escolas.

Contudo, devido às reclamações de moradores e ao início das obras da linha do metrô na Asa Sul, as escolas tiveram que se apresentar em outros locais, como o Caldeirão da Folia — também conhecido como Passarela da Alegria, atrás da Torre de TV — Ceilândia e o estacionamento do Ginásio Nilson Nelson.

Vistoria no Ceilambódromo antes do carnaval de 2011: local hoje abriga uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Foto: Marcelo Ferreira/C.B./DA Press

Ceilambódromo

A inauguração do Ceilambódromo foi um importante capítulo na história do carnaval de Brasília. Por sete anos seguidos o desfile ocorreu em Ceilândia, onde uma estrutura era montada exclusivamente para a folia. Hoje, porém, o local abriga uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA).

A noite do grupo especial chegava a reunir 40 mil pessoas, mas, apesar do público, os dirigentes das escolas reclamavam da falta de estrutura e da distância, tirando-os do centro da capital. De Ceilândia, a festa voltou para o estacionamento do ginásio Nilson Nelson, onde permaneceu por mais dois anos.

Legado da Aruc

Das escolas que surgiram com a capital — Unidos da Cruzeiro, Alvorada em Ritmo, Brasil Moreno e a Unidos de Sobradinho —, apenas a Aruc permanece ativa, ancorada no estímulo à cultura do quadradinho e no trabalho social que exerce no Cruzeiro e região. “As escolas de samba podem oferecer muito, não só no carnaval, mas ao longo do ano inteiro”, destaca o presidente da Aruc, Rafael Fernandes de Souza.

A agremiação completa 60 anos em 2 de outubro deste ano e possui na conta 31 títulos de campeã, dos 48 desfiles oficiais dos quais participou. O ‘auge’ foi o octacampeonato, uma sequência inédita de oito prêmios consecutivos, conquistados entre 1986 e 1993, quando, inclusive, superou a madrinha carioca Portela, heptacampeã nos anos 40. Na ocasião, a escola brasiliense levava para a avenida 1,2 mil componentes com fantasias luxuosas e carros alegóricos.

Em 2009, como forma de reconhecimento, o Governo do Distrito Federal, dirigido pelo governador José Roberto Arruda, concedeu à Escola o título de Patrimônio Cultural Imaterial do Distrito Federal. A Aruc firma-se como a maior vencedora de desfiles de carnaval no Brasil, uma hegemonia nunca vista.

Patrimônio em risco

Apesar do prestígio, as escolas de samba do Distrito Federal não desfilam na avenida desde 2014, quando contaram com repasse governamental para a folia. A festa do ano teve como vencedora a Acadêmicos da Asa Norte, escola fundada em 1969 e segunda maior detentora de títulos — sete, ao todo.

Após seis anos sem desfiles competitivos, as escolas lutam para pagar as dívidas e sobreviver ao ‘novo normal’, uma época de restrições e decretos que proíbem festas e aglomerações para evitar a disseminação da covid-19.

“Ano passado fizemos uma live em outubro, mês de nosso aniversário, para escolher o samba-enredo deste ano. Agora, em 2021, temos o samba gravado, mas não temos condições de realizar nenhuma atividade. Gostaríamos que o GDF tivesse destinado recursos pelo menos para apresentações on-line em nossa quadra. Mas o decreto publicado proibiu qualquer manifestação carnavalesca. Compreendemos que, com a pandemia, seria inviável fazer algo na rua, mas o formato virtual já é consolidado, e poderíamos ter realizado algo no período com o apoio do poder público. No mais, temos de nos virar para manter as contas em dia”, observa Fernandes.

O presidente se refere ao decreto publicado pelo governador Ibaneis Rocha (MDB), na quinta-feira (11/2), que proíbe festas, eventos e blocos de carnaval em Brasília. A medida, publicada no Diário Oficial (DODF), caso desobedecida, prevê multa de, no mínimo, R$ 20 mil.

Por isso, Fernandes conta que decisões para além do samba precisaram ser tomadas para garantir a continuidade da Aruc. “Ao longo de 2020, realizamos vaquinhas on-line e contamos com os próprios diretores e associados que se dispuseram a ajudar. Desde que houve maior flexibilização para atividades, temos alugado nosso salão para aulas e reuniões que permitem manter o distanciamento e garantir a segurança sanitária, embora arrecadando menos do que precisamos para nos manter”, diz e completa: “O apoio do Estado é fundamental, afinal é até previsto na Constituição. É dever fomentar a cultura”.

“A sociedade mudou e o carnaval de escolas de samba de Brasília precisa mudar também, se adaptar. Só não podemos permitir que ele morra. Já se vão sete anos sem desfiles na cidade. Foi uma de nossas primeiras manifestações culturais, desde 1962. Ele tem público, tem relevância e precisa ser olhado com mais carinho pelas autoridades e pela sociedade também”, finaliza.

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